Por Diego Facundini*

Estudantes do terceiro ano do curso de Enfermagem da USP reuniram seis profissionais de saúde na aula inaugural da Liga Acadêmica de Saúde da População em Situação de Rua e Vulnerabilidades (LAPSR). Uma terapeuta ocupacional, uma assistente social, um médico (e cronista), um enfermeiro, uma dentista e uma psicóloga compartilharam, um por um, suas experiências no cuidado a pessoas em situação de rua. O encontro aconteceu na noite do dia 5 de junho, sexta-feira, na frente da sala 27 da Escola de Enfermagem (EE) da USP.
A LAPSR é uma iniciativa dos próprios alunos e suas fundadoras, Gabriela Lopes Silva e Filomena Chiquetto do Lago, contam que a ideia é abordar o tema de uma perspectiva multiprofissional, trazendo os olhares de cuidadores de diversas áreas da saúde. Além delas, a criação da liga também contou com Igor Oliveira Souza, um estudante de psicologia. “O profissional da saúde tem que estar conectado com a realidade, e a realidade brasileira, em especial a realidade de São Paulo, é essa. Isso envolve política, política pública principalmente, e a organização do sistema de saúde. Então eu acho que tem que fazer parte da formação do profissional de saúde o cuidado com a população vulnerável, porque é uma realidade e a gente tem que saber lidar com isso”, fundamentou Filomena.
A Liga terá como atividades aulas fechadas, só para membros, ministradas ao longo do ano, que contarão com a presença de convidados experientes no tema, além de algumas aulas abertas ao público. O maior diferencial da iniciativa, porém, estará em seu contato próximo com o Consultório na Rua, um programa do Sistema Único de Saúde (SUS) voltado para o atendimento de pacientes em situação de rua. Os participantes acompanharão o trabalho dos profissionais e, a depender da demanda, prestarão atendimento.
Além de uma introdução à iniciativa, a aula da quinta-feira marcou a abertura do processo seletivo para a escolha dos futuros membros do LAPSR.

A ideia da iniciativa foi de Filomena, que, em sua iniciação científica, pesquisa o cuidado de pré-natal para mulheres em situação de rua realizado pelos enfermeiros do Consultório na Rua. Daí, ela concluiu: “Quando uma pessoa em situação de vulnerabilidade, que lhe é negado tudo, é olhada, quando é cuidada, é impossível não criar um vínculo. Essa ligação humana eu acho que muda tudo”.
A aula inaugural também contou com uma exposição artística, com fotografias da Rede Rua, painéis em serigrafia e crônicas de Vinicius Ramos. Médico do Consultório na Rua em Pinheiros, ele foi um dos palestrantes e relatou que, por meio da escrita, elabora suas experiências no dia a dia como cuidador em contextos de extrema vulnerabilidade. “São casos complexos que eu não consigo ter uma resposta, não consigo propor um tratamento fácil e acho que a escrita acaba sendo uma forma de lidar com isso, elaborar o sentimento”, contou ao Jornal da USP. Seus casos se tratam de acompanhamentos, por vezes de longo prazo, feitos no local e adaptados ao contexto de seus pacientes. “A ideia do Consultório na Rua é fazer um atendimento in loco para ampliar o acesso da população de rua ao serviço de saúde. Muita gente faz atendimento na calçada, em cenas de uso aberto [de drogas]”, destacou.
De acordo com Vinicius, “academicamente, a gente aprende protocolos muito bem definidos, com base em estudos científicos que são rigorosamente controlados e, quando estamos em campo, a gente precisa construir essa proposta de cuidado junto com o usuário, de uma forma que nem sempre vai ser o que eu aprendi na faculdade”.

A clínica adaptada à rua
No encontro da quinta-feira, Alessandra Grotteria, a primeira dentista contratada pela ONG Bompar (Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto), em 2013, para compor a equipe do Consultório na Rua – localizado na Rua da Mooca –, contou um pouco sobre a experiência do atendimento odontológico para pessoas em situação de rua.
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Os pacientes atendidos pela sua equipe em geral têm a saúde bucal muito comprometida, precisam de extrações ou reabilitações com prótese, e seus tratamentos são muito dificultados pelo uso de drogas. “A pessoa geralmente não está em condições de receber orientações e tomar os cuidados necessários após uma extração”, disse.
Segundo ela, há casos em que os pacientes procuram a clínica procurando sanar alguma dor, assim como há aqueles que, em fase de transição e procurando sair do vício, procuram uma melhora estética. “Então eles já estão numa fase de autocuidado, já querem melhorar um pouco a autoestima, e vêm procurar a gente. É muito grande o número de casos de pacientes que perdem dentes, e alguns querem voltar ao contato com familiares, com amigos, e não têm coragem. Têm vergonha de reencontrar algumas pessoas por conta da estética comprometida”, afirmou.
Para o enfermeiro Conrado Ferrari, especialista em Atenção Básica e Saúde da Família pelo Ministério da Saúde, o profissional do Consultório na Rua precisa entender por inteiro o contexto no qual o paciente se insere e ter, além de empatia, criatividade. A população em situação de rua, contou, “também é hipertensa, também é diabética, tem a questão da tuberculose”, e particularidades como o caráter muitas vezes itinerante desses indivíduos podem tornar seus tratamentos cada vez mais complexos. “Imagina a gente com o paciente em situação de rua que tem que tomar sua Losartana, o seu Captopril, de hora em hora. Ele não tem relógio. Como que a gente faz isso?”, questionou. Ferrari narrou uma série de casos em que teve que se adaptar e achar soluções improvisadas para garantir que seus pacientes seguissem tratamento.
Também falou a assistente social Najila Thomaz de Souza, trabalhadora da Política de Assistência Social da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP), no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) paulista. Ela voltou o olhar para as trabalhadoras, e criticou como o trabalho de cuidado, principalmente com a população em situação de rua, é frequentemente mal pago, insalubre e pouco equipado. Já Vinicius Ramos, em sua fala, reforçou que a clínica deve ser adaptada ao atendimento na rua, disse que “o trabalhador do SUS é um universo em crise”, e criticou o caráter eurocentrado e engessado das formações na área da saúde.

A terapeuta ocupacional Liliane Martins enfatizou a importância da escuta das histórias das pessoas em situação de rua. “Vamos pensar que a pessoa em situação de rua está em vulnerabilidade, mas a gente não pode confundir com fragilidade, com tutela. Como que a gente banca a emancipação? Ajudar essas pessoas a se emancipar parte do princípio de que elas precisam reconstruir e ressignificar suas histórias”, fundamentou.
“É importante que a gente vá construindo novos discursos dentro da saúde mental, que a gente precisa cuidar para além da tutela. Nada melhor do que um sujeito em pleno exercício da sua cidadania ter a autoconsciência, tomar conhecimento que tem uma dimensão política e econômica que produz sofrimento”, completou, antes de propor o aquilombamento – que ela chamou de uma “tecnologia ancestral de liberdade e fortalecimento de laços sociais” – como uma forma de fugir do modelo eurocêntrico dentro da saúde.
A psicóloga Gabriela Gonçalves Carneiro, também profissional do Consultório na Rua, falou sobre o tempo que leva para acessar um paciente, “o tempo que o outro me permite”, que, como conta, pode levar anos. Comentou sobre pacientes vivendo com transtornos mentais graves, que, diferente por exemplo de usuários de drogas, tendem a viver em isolamento, o que demanda um cuidado a mais dos profissionais. Relatou casos de sucesso, também, em que pacientes com HIV, após uma década com diagnóstico, estavam com o vírus indetectável, ou uma paciente psicótica em situação de rua por mais de 30 anos que pôde voltar bem para sua família.
No final, falou sobre a morte dessas pessoas: “Se o poder público não fizer nada, quem vai assistir essa pessoa morrer na rua vai ser o Consultório na Rua”. Apesar disso, ela conclui que “tem muito afeto, tem muita coisa bonita na rua”.

Um preâmbulo artístico
Logo além da entrada da EE, uma mostra artística em três partes recepcionou os convidados e espectadores da palestra. Penduradas em quadros na frente do auditório, estavam, primeiramente, as crônicas de Vinicius Ramos. Depois, fotos da Rede Rua tiradas entre 2002 e 2009 mostrando protestos, cartazes e pessoas que viviam na rua – uma denúncia, dizia o texto, à violência e às situações de exclusão.
Com maior destaque, um grande painel em serigrafia estampado com padrões coloridos. A obra é de autoria de pessoas em situação de rua do centro da cidade, fruto de um projeto da Ação Educativa Extramuros da Pinacoteca do Estado de São Paulo, pertencente ao museu no bairro da Luz, realizado ao longo de 2024 na Casa de Oração do Povo na Rua.
A ponte que levou os painéis daí até os corredores da EE foi o contato que a equipe da Liga já cultivava com os espaços de apoio às populações vulneráveis, principalmente por meio de iniciativas como o Acolhe: cuidado integral a mulheres, minorias sexuais e de gênero em situação de rua, um projeto de extensão que, assim como o LAPSR, é coordenado pela professora Nayara Gonçalves Barbosa. A docente da Enfermagem há seis anos desenvolve projetos com pessoas em situação de rua.


*Sob a supervisão de Antonio Carlos Quinto e Silvana Salles